quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

O país e a sua realidade - II

Vamos construir um estereótipo: o português-tipo é do Benfica e gosta de estar informado sobre desporto, vê a TVI e tem um interesse particular pela Casa dos Segredos, tem a série de televisão Game of Thrones no topo da sua lista de preferências, veste Zara, faz compras na Worten e quer um iPhone e um Mercedes, ouve a música do momento, está no Facebook, lê A Pipoca Mais Doce, gosta de blockbusters, tem um fraquinho por bolos de chocolate e de iogurte, está a ponderar uma visita a Angola e quer saber mais sobre Érica Fontes."

Hugo Torres, in Público

O país e a sua realidade - I

Vemos a cada dia que passa que os portugueses não sabem nada, ou praticamente nada, sobre o seu país. A ignorância histórica atinge as raias da obscenidade. Quando muito refastelamo-nos nuns ecos idiotas do tempo dos Descobrimentos, mal sabendo do que estamos a falar. Da Geografia, seja física, seja humana, ainda menos. Não conhecemos bem o território que habitamos, nem a relação da nossa vida com ele. Temos uma frequência sumariamente turística e petisqueira com alguns lugares mais promovidos.
Da cultura portuguesa e no que toca às artes, fora este ou aquele monumento mais visitados ao domingo durante a volta dos tristes, somos de uma fúnebre obtusidade. Da língua, estamos falados. Não me refiro apenas ao desconhecimento da sua história. Sucessivas gerações ligadas ao ensino têm dado cabo dela e contribuído para o seu abastardamento. Práticas diárias na comunicação social coadjuvam essa torpeza. É estropiada por toda a gente em todas as áreas do quotidiano e do saber. Da Literatura, depois de décadas em que o ensino andou divorciado dela ou se dedicou a exercícios metodológicos que corresponderam ao seu assassínio progressivo, vivemos numa ignorância deprimente. Basta ler os jovens escritores que se candidatam a concursos literários (e tenho feito essa experiência por pertencer a vários júris). Eu apostaria, dobrado contra singelo, que, salvo muito raras, mas mesmo muito raras excepções, não têm qualquer experiência, por muito elementar que seja, da grande tradição literária da nossa língua e do património que a integra. Dá-me ideia de que é gente que leu algum autor dos últimos vinte anos, e pouco mais. Não aprenderam absolutamente nada com mais ninguém. Para trás do mínimo que leram, é como se a literatura portuguesa não existisse nem tivesse um cânone, não fosse lida por inútil ou desnecessária, e se encontrasse relegada para o baú das inutilidades no sótão das insignificâncias pátrias.
Esta situação não me pesa apenas a mim como escritor. Os confrades da minha geração e, vamos lá!, pelo menos os da seguinte, têm perfeita consciência daquilo que estou a dizer e estou convencido de que fazem o que podem para ajudar a superar este lúgubre estado de coisas. O assacar de responsabilidades não adianta muito neste momento. Já sabemos dos programas de ensino, da má qualida- de de muitas docências, do alheamento imperdoável de muitas instituições públicas e privadas, de muitas famílias, de muitos encarregados de educação.
O que é preciso é fazer alguma coisa que fique do lado de fora das estatísticas e das apreciações formais da competências. O que é preciso é a promoção a sério de uma série de disciplinas e de conteúdos identitários, sem exacerbamentos nacionalistas nem patriotinheirismos ridículos e fora de prazo. E também é preciso pôr estes valores, no seu vasto e múltiplo conjunto e nas suas interligações ao alcance do maior número possível de cidadãos, independentemente do trajecto que tenham feito ou façam nos níveis do ensino secundário e do ensino superior.
De resto, não deveria esquecer-se uma relação, diacrónica e sincrónica, com a Europa. Sem algumas noções elementares a este respeito, nada compreenderemos de nós mesmos, da nossa identidade e dos nossos problemas. Essa falta também se faz sentir, tanto ou mais do que as apontadas no tocante à História, à Geografia, às artes, à língua e à Literatura.
É por isso que deveria haver, um pouco por toda a parte, programas que abrissem pistas de compreensão para todas estas realidades e outras mais, levados a cabo pelo maior número possível de instituições. Esses programas deveriam também suscitar uma componente de prazer, de alegria do conhecimento, de abordagem sem complexos da identidade e da história nacional. Deveriam ajudar os cidadãos a compreender-se sem ventriloquias nem gargarejos enfáticos e suscitar neles a vontade de ir mais longe na aprendizagem de si mesmos.
As pessoas estão fartas de se sentir niveladas pelo mais baixo. Querem conteúdos acessíveis, sem empertigamentos académicos, e que permitam a organização de transversalidades entre as áreas do saber. Este é um fenómeno de todas as idades e de todas as condições sociais. Indo beber a imagem ao Alexandre O"Neill, ninguém quer viver Portugal como um remorso.".